“Como disputar a atenção de obras canônicas?”

No penúltimo dia de Flip, a tenda da Central Flipinha promoveu a roda de conversa “Literatura e currículo escolar: ocupações”, com Allan da Rosa, Amara Moira e Prisca Agustoni. O currículo escolar é um território a ser contestado e ocupado por novas identidades e perspectivas. Esta foi uma conversa por e para educadores de todos os âmbitos e esferas do conhecimento, que tratou de identidade, representatividade, diversidade, fazer artístico e o lugar do educar ante a imaginação.

A discussão iniciou-se com a definição de cada autor sobre suas definições e percepções de suas identidades literárias, Amara questionou “Como disputar a atenção de obras canônicas?”. Após ler o trecho de Macunaíma, onde o protagonista força Ci, a Mãe do Mato, a ter relações sexuais com ele, prosseguiu: “Naturalizamos a violência em obras literárias hegemônicas, dizem que a literatura transforma, muda, mas ela também pode veicular, alimentar, perpetuar as práticas de violência na nossa sociedade. […] E eu amo Mario de Andrade, mas amá-lo não quer dizer não criticá-lo.”

Dando sequência ao comentário, Allan brincou: “Ah, já cansei de falar de Mário de Andrade, adoro ele, mas ele pode ficar de reserva um pouco, ficar no banco.” E então, argumentou sobre identidade: […] Às vezes a gente fica maniqueísta demais. Literatura deixa dilema, deixa o caminho úmido, ela não deixa sempre o caminho do que é certo. O risco que corremos é de anular a subjetividade daquela pessoa [leitor]. Escritor não é vereador, se você tenta representar todo mundo, não representa nem você mesmo. […] Escrever é meter o corpo na imagem e a imagem no corpo.”

Prisca já caminhou para outra abordagem, analisou sua identidade literária como um fragmento de sua identidade, de seu aparente não pertencimento: “Não sei exatamente quem eu sou. Identidade é muitas coisas e, ao mesmo tempo, não se define. Não sei exatamente quem eu sou e é por isso que escrevo, é maravilhoso. Não quero que o pouco que posso fazer com a minha literatura seja isso [delimitador].” Agustoni preocupa-se que a “prática da criação”, que é integrante no ensino, seja domesticada pelo ensino, crê que o real desafio da escola seja educar sem talhar o imaginário infantil – que é tão livre e espontâneo.

Sobre o tópico de diversidade e respeito às diferenças, Prisca começou realçando o contraditório e sua evidenciação pela vivência, “o contraditório é nosso, é humano, mas não precisa ser a forma como vivemos, apenas o que geramos. Existe um certo olhar que abre à imaginação, ao diverso. Há cruzamentos na vida que mudam, não desmerecendo a escola, mas a vivência é importante.” Amara finalizou a conversação retomando o clássico literário brasileiro “Grande Sertão Veredas” de Guimarães Rosa: “É uma puta obra gay. Um monte de estudiosos graúdos leem e analisam, e, no fim, é uma história gay. São 585 páginas de um cara querendo beijar o outro e tentando compreender isso. […] Manuel Bandeira manda uma carta pra Guimarães Rosa, afirmando que gostaria que Diadorim (o amor platônico de Riobaldo, protagonista) fosse homem até o final da história. Se Guimarães Rosa se acovardou ou não para inserir o livro na heteronormatividade, foi um tiro no pé. A maior obra da literatura brasileira é um romance gay com um personagem transgênero [Diadorim].”

Compartilhe esta notícia: