Nos vemos novamente em 2024!

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Vista aérea de Paraty nos preparativos para a 21ª Flip. Foto: Walter Craveiro

“Quando a sonhar me vejo na cidade
A bela adormecida ao pé do mar
E bebo a tarde e sinto a madrugada
E a noite de permeio é só luar.

É sol e mar, é praia e serenata
São pedras ladrilhando a minha rua
O mar passeia solitário na calçada
Espelhando a lua cheia

nos beirais e nas sacadas!

Vida!
Como é boa para a gente viver
Amo!
Como é bom a gente amar aqui
Na praça, no cais, na praia…

Tudo isso é Paraty

É Paraty, é Paraty!”

Do poeta José Kleber Martins Cruz, filho de Paraty

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Olá, hoje é 27 de novembro. Hora de empacotar as malas. Ontem (26) encerrou-se a 21ª Flip, após cinco dias intensos de trocas, poesia, música e literatura. Durante esse período, Paraty se encheu de cores e sorrisos. Agora permanecem os aprendizados e um sentimento de saudade. Cabe a nós o desafio de resumir um pouco da riqueza que foi esse último domingo de encerramento.

Cobertura | Mesas 19 e 20

­Só então pude falar e Livros de cabeceira

No último dia de Flip, o Programa Principal começou às 10h, com a Mesa 19: Só então pude falar. O debate entre o escritor Itamar Vieira Junior, a artista Glicéria Tupinambá e a educadora Miriam Esposito marcou a edição de 2023 da mesa Zé Kléber, que homenageia o poeta paratiense. O encontro teve como tema as relações entre ancestralidade, educação e a importância do conhecimento popular, construído coletivamente.

Na visão do celebrado romancista baiano, estamos diante de uma oportunidade de reconfigurar os parâmetros de formação de crianças e jovens: “Por muitos anos nos envergonhamos da história brasileira, e ela ainda nos envergonha, mas a gente consegue tirar dessa vergonha algo ainda mais poderoso, que é se reconhecer nessa história, é compreender essa história, para projetar um presente e um futuro diferentes”.

“Só então pude falar”, mesa com Itamar Vieira Junior, Glicéria Tupinambá e Miriam Esposito. Foto: Walter Craveiro

Ao tomar a palavra, Esposito, que tem longa trajetória como professora, sobretudo no território de Paraty, resumiu o espírito do encontro ao dizer que não consegue “ver a educação individualmente, tudo está interligado em termos socioambientais, políticos. Em um território como Paraty, é fundamental que os educadores saibam que a política educacional tem o dever de garantir a terra, o território dos povos tradicionais”.

A artista e pensadora indígena Glicéria Tupinambá foi além, propondo uma reflexão a respeito da própria estrutura de pensamento que condiciona as relações de trabalho, convívio e formação dos indivíduos: “Nosso tempo é coletivo. Eu dependo do outro, dependo do pássaro, dependo do território, da abelha, das crianças, dos velhos, das mulheres. Tem o lugar do sonho, tem o gavião falando comigo. E se eu fosse entender a filosofia do outro, eu já estaria internada, teria diagnóstico e estaria tomando diazepam e tudo mais. Como eu sei do meu território, temos uma vivência na qual a gente entende que a floresta fala, que os pássaros falam, e aí a gente entende tudo à nossa volta”.

Logo em seguida, ao meio-dia, como é tradição da Festa, o Programa Principal da 21ª edição chegou ao fim com a Mesa 20: Livros de cabeceira, quando alguns autores convidados leem trechos de livros que marcaram sua vida. Neste ano, Liz Calder, a Presidente do Conselho da Flip, Nora Krug, Natalia Timerman, Manuel Mutimucuio, Laura Wittner, Gustavo Caboco e Dionne Brand foram responsáveis por compartilhar textos com o público do Auditório da Matriz, do Auditório da Praça e das transmissões via internet. Abaixo, as escolhas dos autores:

Nora Krug: The fourth state of matter, de Jo Ann Beard

Natalia Timerman: Pai contra mãe, de Machado de Assis

Manuel Multimucuio: Ninguém matou Suhura, de Lilia Momplé

Laura Wittner: Esta mujer, poema de Circe Maia

Gustavo Caboco: Makunaímã, de Mário de Andrade

Dionne Brand: Jazz, de Toni Morrison

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Cobertura | Rio de Sangue

No Auditório da Praça, uma mulher usando uma saia vermelha longuíssima atravessa o palco, deixando a cauda do tecido cobrir o chão, como se fosse sangue escorrendo, impossível de estancar. Enquanto caminha, recita uma obra de Conceição Evaristo sobre a menina que descobre o sangue e, com ele, herda o conhecimento de gerações de outras mulheres.

“Minha menina amanheceu hoje
mulher – velha guardiã do tempo.
De mim ela herdou o rubi,
rubra semente, que a
primavera mulher nos ofertou.
De sua negra e pequena flor
um líquido rúbeo, vida-vazante escorre.
Dali pode brotar um corpo,
milagre de uma manhã qualquer.”

Do lado oposto, outra mulher completa a cena com mais poesia. A performance Rio sangue, apresentada por Iara Rennó e Mayara Baptista, mesclou poesia encenada e música, apresentando ao público trechos de obras de Conceição Evaristo e Pagu. Ainda durante a apresentação, Iara Rennó cantou e tocou algumas canções de sua autoria.

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Roda de conversa | Saberes de infinitos

Na manhã nublada de domingo, três gerações se reuniram na praça da Igreja de Santa Rita para discutir a importância do conhecimento e das histórias da tradição oral. Marcelo D’Salete, Mestra Griô Benedita Martins e Mestre Griô Nilton Aguiar compartilharam um pouco de suas memórias e explicaram como trabalham para preservar o legado de sabedoria transmitido desde tempos antigos.

O primeiro a se apresentar foi Mestre Griô Nilton Aguiar, contador de histórias e cirandeiro da comunidade tradicional da Graúna (ciranda caiçara de Paraty). O legado que ele busca manter se deu ao criar a Folia de Reis Estrela do Oriente, em Paraty, onde ocorre a encenação da visita dos três Reis Magos ao menino Jesus. Nessa prática, os devotos visitam as casas e cantam o nascimento de Jesus.

Mesa “saberes de infinitos” (Educativo), com Marcelo D’Salete, Mestra Griô Benedita Martins e Mestre Griô Nilton Aguiar. Foto: Sara de Santis

Em seguida, a Mestra Griô Benedita Martins emocionou o público. Benedita relembrou as dificuldades de sua infância, quando foi morar com o pai e a madrasta. Diante da violência que sofria em casa, escolheu viver na rua aos 7 anos. Perambulou sozinha, sem pai e sem mãe (que havia falecido), e sem lar até os 12. Emocionada, com os olhos marejados, ela recordou que tinha o sonho de aprender a ler e escrever. Graças a uma professora que encontrou por acaso, ela aprendeu o suficiente para escrever suas próprias histórias, além de mais de 2 mil composições. “Mesmo morando na rua, eu queria estudar. E depois, eu queria cantar, mas não cantar as músicas dos outros, mas as minhas canções.”

Por fim, ao lado de dois mestres, Marcelo D’Salete tomou a palavra com humildade e contou que a tradição oral sempre esteve presente nas reuniões familiares, fosse através da música, do samba ou das trocas entre pessoas que não se viam há muito tempo. No relato, Marcelo destacou que relatos como o de Benedita eram muito comuns em famílias negras. “A experiência de mulheres negras, passando por situações como domésticas, trabalhando e vivendo na casa do patrão, às vezes, eram coisas muito próximas à escravidão. Era muito presente em diferentes famílias negras. Como também foi na minha família. Minha mãe nasceu em São Paulo, mas começou a trabalhar como doméstica com cerca de 10 anos. Ouvir a Dona Benedita contar sua história me fez ver a história da minha mãe e da minha avó.”

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Programa educativo | Abrir janelas

Fernanda Takai, Vana Campos e Daniel Kondo, participantes da mesa “Abrir janelas”, conversaram sobre a vontade de permitir que os pequenos leitores desenvolvam uma paixão pelos livros por meio de abordagens diversas. Juntos, os três artistas deram vida ao projeto interdisciplinar Um ponto, tantos pontos, da Editora Cachecol, que inclui um livro interativo e uma trilha sonora. Na obra, eles assumiram a missão de refletir sobre o significado do ponto, que está presente em todos os lugares.

“Ao ver o sol batendo e a poeira subindo, o céu estrelado ou até mesmo as pintinhas em minha perna, eu pensava que são muitos pontos”, compartilhou a psicóloga e autora Vana Campos. “Muitas vezes, as pessoas se perguntam como os textos surgem. A maioria dos livros nasce das observações do que acontece ao nosso redor. O exercício da observação do cotidiano com calma e afetividade resulta em textos, músicas e pinturas. Quanto mais simples, mais conexões você estabelecerá com as pessoas. É mais fácil nos identificarmos com o ordinário do que com o extraordinário”, complementou Fernanda Takai.

As ruas de Paraty na 21ª Flip. Foto: Walter Craveiro

Sobre direitos e atrasos

A escritora francesa Colombe Schneck se encontrou com a brasileira Tati Bernardi em mesa mediada pela jornalista Paula Jacob na Casa Paratodos logo no início da manhã do domingo. Depois de ter participado do Programa Principal da Flip deste ano, quando pôde tratar com mais detalhes de sua obra Dezessete anos (Relicário, 2023), Schneck aproveitou a ocasião para traçar comparações com a França, onde o aborto é descriminalizado, e o Brasil. “Na França, mesmo com a permissão, o Estado chegava a exigir que as mulheres fizessem uma reflexão de dez dias a partir do momento que marcavam seu procedimento na clínica. Isso quer dizer que há uma tutela imposta aos corpos femininos, como se elas não fossem capazes de decidir. Essa questão de poder antecede a questão moral”, afirmou.

Com bom humor e um belo toque de ironia, características que marcam sua escrita, Tati Bernardi contou uma história: “Há um mês das eleições do ano passado, quando a ameaça da continuidade do fascismo ainda nos assustava, perguntaram ao presidente Lula sobre aborto. Quando ele disse que era contra, boa parte da esquerda, eu inclusa, comemoramos! Vai que ele fala a favor e o Bolsonaro ganha? Esse é o tamanho do nosso atraso!”, disse, arrancando risadas.

Em uma troca emocionada com a plateia que acompanhava a mesa, Colombe reforçou a importância de falar sobre o tema: “Agradeço a todas as mulheres que me procuraram na Flip para contarem seus relatos corajosos, diferente de mim, que silenciei por muito tempo. Permanecer em silêncio é uma barreira que provoca apagamento”.

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Até ano que vem!

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Esse conteúdo é uma parceria entre a Flip e a Revista Bravo!

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